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segunda-feira, 22 de abril de 2013

Competência em crimes dolosos contra a vida


Dúvida relativa à fase de pronúncia se deve ao artigo 14 da Lei 11.340/06

Texto: Felipe Fontana Porto



O presente artigo visa a estabelecer se a Lei 11.340/06, que criou diversos mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, modificou a competência da fase de pronúncia dos processos em que se apura a suposta prática de crimes dolosos contra a vida praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas e familiares.

A dúvida deve-se ao art. 14 da Lei 11.340/06, que assim dispõe:

Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. (grifo nosso)
Em relação ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida, não resta dúvida de que será perante o Tribunal do Júri, tendo em vista a competência estabelecida no art. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal:


Art. 5º (...) XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: 
(...) 


d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida; (grifo nosso)
A dúvida é saber se o artigo 14 da Lei 11.340/06 teve como consequência a modificação da competência da fase de pronúncia quando o crime doloso contra a vida se der no âmbito das relações domésticas e familiares.

O Superior Tribunal de Justiça, em um primeiro posicionamento sobre a matéria, assim se manifestou: 



HABEAS CORPUS - CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA PROCESSADO PELO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER - NULIDADE - NÃO OCORRÊNCIA - LIBERDADE PROVISÓRIA - CRIME HEDIONDO - IMPOSSIBILIDADE - ORDEM DENEGADA. -Ressalvada a competência do Júri para julgamento do crime doloso contra a vida, seu processamento, até a fase de pronúncia, poderá ser pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, em atenção à Lei 11.340/06.



- Não há possibilidade de concessão da liberdade provisória, em crimes hediondos, apesar da modificação da Lei 8.072/90, pois a proibição deriva da inafiançabilidade dos delitos desta natureza, trazida pelo artigo 5º, XLIII, da Constituição Federal.



- Tratando-se de paciente preso em flagrante, pela prática, em tese, de crime hediondo, mostra-se despicienda a fundamentação do decisum que manteve a medida constritiva de liberdade nos termos exigidos para a prisão preventiva propriamente dita, não havendo que ser considerada a presença de circunstâncias pessoais supostamente favoráveis ao paciente, ou analisada a adequação da hipótese à inteligência do art. 312 do CPP.


- Denegaram a ordem, ressalvado o posicionamento da Relatora. (HC 73.161/SC, Rel. Ministra Jane Silva (desembargadora convocada do TJ/MG), Quinta Turma, julgado em 29/08/2007, DJ 17/09/2007, p. 317) (grifo nosso)
Uma leitura apressada deste julgamento poderia fazer crer que a Lei 11.340/06 em seu art. 14 havia estabelecido a competência para o processamento dos crimes dolosos contra a vida em violência doméstica perante os Juizados de Violência Doméstica.

Entretanto, merece transcrição trecho do voto da ministra relatora:
Como o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, através da Resolução 18⁄06, instituiu o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, que, no caso, funciona junto à 3ª Vara Criminal da Comarca de Florianópolis, o processamento do feito, até a fase do artigo 412, do Código de Processo Penal, se dá no referido Juizado, em atenção ao artigo 14, da Lei 11.340⁄06. Este artigo determina que o processo, julgamento e execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher se dará nestes Juizados. Assim, não se trata de usurpação da competência constitucional do Tribunal do Júri, vez que o julgamento do feito será realizado nele. Apenas terá curso, o processo, no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, até a fase do artigo 412, do Código de Processo Penal.

O voto deixa muito claro que a competência para o processamento da fase de pronúncia nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher deve-se à resolução do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, que assim estabeleceu expressamente.


Portanto, o que se infere desta decisão é que os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em regra não têm competência para o processamento dos crimes dolosos contra a vida, mas os Tribunais de Justiça podem ampliar a competência destes juizados para incluir referida competência. Porém isto deverá estar expressamente previsto na legislação de organização judiciária local.

Veja que este entendimento se coaduna com o disposto no art. 129, § 1º, da CF/1988, que estabelece ser dos Tribunais de Justiça a iniciativa da legislação de organização judiciária:


Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição. 
§ 1º - A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça. 


Acrescente-se que o Superior Tribunal de Justiça em julgados posteriores confirmou este entendimento, conforme ementas abaixo transcritas:


PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. JUIZADO ESPECIAL. COMPETÊNCIA. CONSTRANGIMENTO. RECONHECIMENTO. 



1. Estabelecendo a Lei de Organização Judiciária local que cabe ao Juiz-Presidente do Tribunal do Júri processar os feitos de sua competência, mesmo antes do ajuizamento da ação penal, é nulo o processo, por crime doloso contra a vida - mesmo que em contexto de violência doméstica - que corre perante o Juizado Especial Criminal. 


2. Ordem concedida para anular o processo a partir do recebimento da denúncia, encaminhando- se os autos para o 1º Tribunal do Júri de Ceilândia/ DF, foro competente para processar e julgar o feito. (HC 121.214/DF, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 19/05/2009, DJe 08/06/2009) (grifo nosso)

HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. PREVISÃO NA LEI DE ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. 



1. Há previsão expressa na Lei de Organização Judiciária do Distrito Federal a respeito da competência do Tribunal do Júri para processar e julgar os crimes dolosos contra a vida, ainda que se trate de delito cometido em contexto de violência doméstica. Precedentes. 


2. Ordem denegada. (HC 163.309/DF, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 07/12/2010, DJe 01/02/2011) (grifo nosso)

Ressalte-se que este entendimento não viola a competência constitucional do Tribunal do Júri, posto que, conforme visto, o texto da Carta Magna traz expressamente que a competência deste tribunal é apenas para o "julgamento dos crimes dolosos contra a vida" (inciso XXXVIII do art. 5º da CF/88) .


Confirmando esta conclusão, segue trecho da decisão monocrática do ministro Joaquim Barbosa do Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 92.538/SC: A Lei n°11.340/06 (denominada Lei Maria da Penha) adotou um conceito de violência doméstica bem amplo, de forma a abarcar diversos instrumentos legais para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nas instâncias administrativa, civil, penal e trabalhista. Assim, o art. 14 da aludida Lei autorizou a criação pela União ou pelos Estados, de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal. Diante disso, a Resolução n° 18/06 do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina instituiu o Juizado de que trata a lei e, na Comarca da Capital, estabeleceu seu funcionamento junto à 3ª Vara Criminal, deslocando, nos casos de crimes dolosos contra a vida da mulher, a instrução do processo, até a fase do art. 412 do CPP, para a 3ª Vara Criminal da Capital, mantendo, contudo, o julgamento perante o Tribunal do Júri (conforme parecer do Procurador de Justiça no HC 2006.044235-4, do TJ de Santa Catarina, fls. 103). 


Não vejo ilegalidade na Resolução n° 18/06 do TJ de Santa Catarina, que em tudo procurou ajustar a organização judiciária ao novo diploma legal, sem conflitar com as normas processuais que atribuem com exclusividade ao Tribunal do Júri, o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. (grifo nosso)

Desta forma, para saber qual a competência em cada estado para o processamento da fase de pronúncia dos crimes dolosos contra a vida no âmbito das relações domésticas e familiares contra a mulher, é necessário verificar a lei de organização judiciária e as resoluções dos Tribunais de Justiça que criaram as referidas varas especializadas.

Felipe Fontana 
Porto Analista de Promotoria I (Assistente Jurídico) do Ministério Público do Estado de São Paulo; graduado em Direito na UNIVEM - Centro Universitário "Eurípedes" de Marília; pós-graduado em Direito Processual pela Universidade Anhanguera-Uniderp.

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