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quarta-feira, 24 de abril de 2013

"A Maria da Penha me transformou num monstro"


Quem é, como vive e o que pensa o homem condenado por tentar matar a brasileira que deu nome à lei que combate a violência contra a mulher no País. Quase 28 anos depois do crime, ele fala pela primeira vez

Por Solange Azevedo, de Natal (RN)
Assista à entrevista, dividida em quatro blocos:
Bloco 1:
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Bloco 2 :
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Bloco 3 :
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Bloco 4 :
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O economista colombiano Marco Antonio Heredia Viveros chega sorrateiro. Pele bronzeada. Sorriso discreto. Testa alongada pela calvície. Puxa uma pequena mala preta de rodinhas apinhada de papéis. Na outra mão, traz uma pasta surrada estilo 007. Caminha de maneira altiva. Sem olhar para o chão. De camisa azul-clara – mangas compridas, poída, quase colada ao corpo – e calça bege, parece em forma. Declara ter 57 anos, apesar de documentos antigos apontarem sete anos a mais. Com sotaque carregado e depois de me dar um forte e inesperado abraço, Heredia pergunta: “Fez uma boa viagem?”. Durante as nove horas de entrevistas – somadas a uma sessão de fotos e a uma extensa troca de e-mails – ele tenta se mostrar cortês e inofensivo. Pensa em cada frase. Quando foge do script e escorrega nas palavras, respira demoradamente e sorri. Me chama de “meu anjo” e “querida amiga”. “Não sou o que as pessoas pensam”, afirma. “A Maria da Penha me transformou num monstro. Não tentei matá-la. O único erro que cometi foi ter sido infiel. Por isso, ela armou toda essa farsa. Essa mulher é um demônio.”
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– Você cita Maria da Penha com muita raiva... 

Heredia não deixa o raciocínio ser concluído e reage:
– Não é raiva. É objetividade. É verdade. Sinto pena dela. Se eu sinto pena, não posso sentir raiva.

Heredia vive solitário, enfurnado em 12 metros quadrados de um quarto de pensão, na periferia de Natal. Mantém pouquíssimos contatos com os vizinhos. Apenas a dona da hospedaria sabe quem ele é. O funcionário da lan house, onde Heredia se corresponde com familiares da Colômbia, não faz ideia de que ele seja um ex-presidiário. A balconista da mercearia, que lhe vende fiado, também desconhece o seu passado. “Não aceito que ninguém entre um centímetro na minha vida. Tiro a pessoa pelo pescoço”, garante Heredia. Ele decidiu se mudar para o Rio Grande do Norte em meados da década de 80, quando o cotidiano na capital cearense ficou insuportável. Partiu em busca do anonimato. Em Fortaleza, cidade onde morava com a biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes e as três filhas do casal, ele era apontado na rua como o criminoso que acertou um tiro na espinha da mulher e a deixou paraplégica. Uma mulher que, anos mais tarde, se tornaria o símbolo do combate à violência doméstica no Brasil e viraria nome de lei.

À medida que Maria da Penha foi crescendo, ganhando espaço na mídia, sendo homenageada como um exemplo de luta, simbolicamente, Heredia foi ficando cada vez menor. Mais cruel, mais perverso. Quase 28 anos depois do crime, ele fala pela primeira vez. Num momento em que julga não ter nada a perder. “O que de pior pode acontecer comigo? Eu morrer? Morrer é o fim de qualquer um. Ser preso? Jamais poderei ser preso”, diz. Como se tivesse encarnado uma espécie de Joseph K., o personagem de “O Processo”, a obra-prima de Kafka, Heredia afirma ter sido jogado na prisão por um crime que não cometeu. Nega ter simulado um assalto e tentado executar Maria da Penha enquanto ela dormia. Nega tê-la mantido em cárcere privado. Nega ter maltratado e batido nas filhas. “Ele sempre vai negar. Sempre fez isso, mesmo quando caía em contradições”, afirmou Maria da Penha, na semana passada, à ISTOÉ. “Mas contra fatos não há argumentos. Foi um crime hediondo e tudo acabou devidamente comprovado na Justiça.”
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“O meu agressor demonstrou ser umapessoa maquiavélica e altamente perigosa” Maria da Penha Maia Fernandes 
Na trama descrita pelo colombiano, Maria da Penha é a vilã. Ela teria ludibriado a polícia, o Ministério Público, os tribunais brasileiros, organizações de direitos humanos nacionais e estrangeiras, os meios de comunicação e convencido testemunhas a mentir. “Denegrir a minha imagem como pai, marido e ser humano seria a forma mais fácil de Maria da Penha me atribuir um crime hediondo”, afirma Heredia. “Todo mundo acha que a Maria da Penha é uma coitadinha porque está numa cadeira de rodas. O Brasil precisa de uma outra fada madrinha. Essa lei nasceu manchada.” Heredia diz que o País se deixou envolver porque o povo brasileiro é “muito emotivo” e sentiu “compaixão por uma paraplégica”. “Emotivo”, aliás, foi o adjetivo usado por um dos auxiliares do líder iraniano Mahmoud Ahmadinejad para se referir ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva quando o petista ofereceu asilo a Sakineh Ashtiani, condenada à morte por apedrejamento. 

Nos 16 meses de cárcere – em regime fechado – e nos anos que se seguiram, Heredia leu livros de direito e se familiarizou com jargões de seriados policiais como “CSI” e “Law & Order”. Aprendeu que as provas técnicas, periciais, têm sido cada vez mais valorizadas em detrimento das testemunhais. Essas últimas foram consideradas fundamentais para que ele acabasse condenado. Heredia examinou folha por folha do processo procurando possíveis lacunas, supostas contradições, passagens dúbias. É isso o que carrega na mala preta e na pasta surrada. Ele reuniu tudo nos livros “A Verdade não Contada no Caso Maria da Penha” e “Extermínio de Homens”. Em outubro de 2010, os lançou através do www.clubedeautores.com.br, site que comercializa obras sob demanda, de escritores independentes.

Heredia afirma que não lê nem assiste ao que é veiculado sobre Maria da Penha. Quando a ex-mulher surge na tevê, ele muda de canal. “Não quero mais ver satanás. Já estive no inferno”, diz. Suas obras, no entanto, parecem ser uma resposta ao livro “Sobrevivi... Posso Contar”, de Maria da Penha, e às entrevistas concedidas por ela desde o crime. Dias depois de falar à ISTOÉ, Heredia não se conteve e pediu a cópia de um texto citado por mim quando estive em Natal. “Não sou bom nessas coisas de internet, de Google. Quando preciso de alguma coisa, é a minha filha quem procura e me manda”, afirma. A moça – uma bela estudante de enfermagem, de 21 anos e cabelos clareados, que também vive na capital do Rio Grande do Norte – o visita esporadicamente. “Acredito cegamente em painho. Ele é um bom pai, um bom homem. Não seria capaz de fazer essas coisas”, diz a universitária. 

Heredia tem cinco filhas. As três primeiras com Maria da Penha, essa universitária com uma potiguar e outra, adolescente, com uma pernambucana. Uma delas sepultou o sobrenome paterno ao se casar. As demais não costumam usá-lo publicamente. Heredia acha que sentem vergonha. O pouco que ele sabe sobre a linhagem que formou com Maria da Penha vem da internet. “Tenho três netos”, conta o colombiano. Heredia tomou conhecimento das crianças porque a filha universitária localizou uma das meio-irmãs na rede social Orkut. “Ela aceitou me adicionar. Mas, depois, mandei algumas mensagens e ela não respondeu”, revela a moça. Também foi no Orkut que a universitária encontrou fotos das meio-irmãs e mandou para o pai. Heredia imprimiu uma das três juntas – já mulheres feitas – e botou num porta-retrato sobre a cabeceira da cama. “Até pouco tempo atrás, o que eu tinha na cabeça era a imagem delas pequenas”, lembra Heredia. “De vez em quando, mando e-mails para a mais velha, em nome das três, dizendo que as amo. Mas ela deve apagá-los.”
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FAMÍLIAAs filhas de Heredia e Maria da Penha numa fotode 1984 – a última que ele tirou com as meninas 
Ao falar das filhas, Heredia fica com os olhos marejados. Dos relatos publicados por Maria da Penha no livro “Sobrevivi...”, os mais chocantes são os relacionados às meninas. “Tudo era motivo de bater nas filhas, quebrar os brinquedos ou objetos quaisquer que encontrasse à sua frente. Às vezes, só por encontrar uma cadeira, toalha ou outro objeto fora do lugar, já era motivo para gritar, quebrar as coisas de casa com tanta raiva que nos amedrontava, inclusive as babás, as queridas Dina e Rita, que a tudo testemunhavam espantadas”, escreveu Maria da Penha. “A fim de tirar o hábito que minha segunda filha tinha de, para adormecer, chupar o dedo polegar, Marco metia suas mãozinhas em meias e as imobilizava, amarrando-as por elásticos, com tal intensidade que, no dia seguinte, persistiam nos braços da criança vergões vermelhos como se fossem queimaduras. (...) Para evitar que as meninas molhassem a cama durante a noite, elas só podiam tomar água até a hora do almoço”.
 
“Nunca maltratei uma filha”, afirma Heredia. “Acho isso uma covardia. Mas as empregadas disseram que eu batia e deixava marcas.”

– Por que elas mentiriam?

– É muito simples, diz Heredia. Havia um rancor entre mim e as empregadas. Segundo elas e Maria da Penha, eu era muito grosso. Eu chamava a atenção quando a que tinha de cuidar das crianças falhava. Sou uma pessoa séria e objetiva. Por isso as pessoas falam que sou um carrasco. 
Heredia fica impaciente quando sua versão sobre o crime é posta em xeque. Movimenta-se para a frente e para trás na cadeira, apoia os cotovelos na mesa e ampara o queixo com as mãos. Sorrindo, ele diz:
– Se eu for responder tudo o que a Maria da Penha fala, vamos ficar aqui a noite toda.

Diante de perguntas incômodas, ele tergiversa e, às vezes, escorrega. Justifica ter comprado outro revólver depois do crime para deixar com o vigia recém-contratado:
– A minha arma tinha sido roubada pelos bandidos. Me autolesionaram... me lesionaram e a levaram.
Maria da Penha foi alvejada aos 38 anos, em maio de 1983. Ficou mais de quatro meses no hospital e foi submetida a uma série de cirurgias. Algumas semanas depois de voltar para casa, numa cadeira de rodas, se separou do marido. Ela prestou o primeiro depoimento em janeiro de 1984. Foi a partir daí que a polícia juntou as peças e passou a responsabilizar Heredia. “Só uma catástrofe iminente poderia ser pior do que o tipo de vida que estávamos levando. O nosso desespero era muito grande. Eu sofria por mim e por minhas filhas”, afirma Maria da Penha. “Eu precisava sair de casa respaldada por uma autorização judicial de separação de corpos, para que não fosse caracterizado abandono de lar.” Ela temia que Heredia entrasse na Justiça para ficar com as filhas. Maria da Penha relata que o então marido passou a proibi-la de receber visitas e fazia de tudo para afastá-la da família e de amigos. Agia como um carcereiro. Ela conta que, em certa ocasião, pediu ajuda para tomar banho – coisa que não fazia havia três dias – e o então marido respondeu que só teria tempo para auxiliá-la no fim de semana.

Heredia foi condenado duas vezes por tentativa de homicídio. Mas o processo ficou empoeirando nos escaninhos da Justiça durante quase duas décadas, enquanto ele permanecia na rua. Recurso após recurso. O colombiano foi preso em outubro de 2002 – quando o crime estava prestes a prescrever – porque o caso foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). A morosidade para concluir o processo, além das evidências de que a violência contra a mulher é sistemática no País, levou a OEA a responsabilizar o Estado brasileiro pelas violações sofridas por Maria da Penha e a acusar o Brasil de ser omisso com a violência doméstica. Por isso, a história de Maria da Penha se tornou um marco. Desde então, por recomendação internacional, o governo vem adotando medidas para atacar o problema. Uma delas foi a criação, em 2006, da Lei Maria da Penha. Antes disso, a violência contra a mulher era tratada como crime de menor potencial ofensivo. Não dava cadeia.

“Comecei a perder tudo quando fui preso. Naquele dia, fui sepultado”, avalia Heredia. “A condenação foi como sentir um punhal nas costas. Mas o cárcere foi como se tivessem arrancado toda a pele do meu corpo. Naquele momento, percebi que a minha vida tinha se desmanchado.” Heredia conseguia levar uma vida normal porque não carregava na biografia o estigma de presidiário. Não lhe faltava trabalho, dinheiro nem mulheres. Na capital do Rio Grande do Norte, onde não era reconhecido e podia andar livremente, ele se casou mais duas vezes, teve duas filhas e continuou atuando como professor universitário e consultor de empresas. Chegou a ganhar R$ 10 mil por mês. Tinha um apartamento confortável, carro importado, crédito para viajar e um círculo razoável de amizades.

Heredia foi capturado em sala de aula e levado para uma prisão do Ceará. Quando ganhou o direito ao semi-aberto, regime em que os detentos podem trabalhar fora durante o dia, foi transferido para um presídio de Natal. Na capital potiguar, voltou a lecionar. O novo emprego, no entanto, durou apenas um ano. “Os alunos procuraram o meu nome na internet e a primeira coisa que aparecia era: assassino. Me chamaram na direção e, elegantemente, disseram que iam cortar as minhas turmas”, conta Heredia. Àquela altura, o terceiro e último casamento do colombiano também tinha acabado. A mulher – uma professora de inglês bem mais jovem do que ele – havia vendido o apartamento da família, engatado um novo romance e se mudado para o Rio de Janeiro com a filha. Heredia não vê a menina há quatro anos.

Quando partiu para a capital fluminense, a mulher deixou com a mãe dela um menininho que Heredia adotara antes de ser preso. O garoto morou com a ex-sogra do colombiano até ser “devolvido” para um abrigo público. No documento de destituição do pátrio poder, Heredia é apontado como um homem de “temperamento agressivo e violento” com a ex-companheira, com a filha biológica e com o adotivo. Num dos trechos, há menção de um boletim de ocorrência registrado no dia 29/1/2001 em que Heredia é acusado de espancar a então mulher. O colombiano nega. Diz que, durante uma discussão boba, a mulher puxava o celular de um lado e ele do outro e, quando ele soltou, o aparelho atingiu o rosto dela. Heredia não comunicou à Vara de Família que fora condenado quando pleiteou a adoção. A assistente social soube quando a ex-companheira de Heredia lhe emprestou o livro escrito por Maria da Penha. Considerou, então, que o colombiano repetira a violência cometida contra as três primeiras filhas e não teria condições de ser um bom pai.
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COTIDIANO
Heredia vive num quarto de pensão
de 12 metros quadrados
 
Sem trabalho nem renda fixa, nos últimos quatro anos, Heredia tem se virado como pode. Por alguns meses, foi coordenador administrativo de uma importadora de CDs. Quando aparece algum bico, ele sabe que não pode exigir muito. Topa até escambo. Certa vez, fez uma consultoria informal para um conhecido e recebeu dois televisores usados como pagamento. Vendeu os aparelhos para pagar contas e abastecer a geladeira. Em outra ocasião, se desfez de um aparelho de som novinho. O último automóvel, um Fiat Uno capenga pelos anos de uso, também serviu para quitar dívidas. Quase tudo o que Heredia tem no quarto pertence à dona da pensão. Quando não tem comida suficiente, o colombiano pula o almoço porque não consegue dormir de barriga vazia.

No dia a dia de Heredia uma coisa é certa: o tédio. “Não tenho o que fazer. Às vezes, tiro as roupas do armário, sacudo tudo e guardo de novo. Olho no relógio e o tempo não passou”, conta. Para disfarçar o cheiro de gordura da própria cozinha e o fedor da criação de porcos e galinhas do vizinho, ele acende um incenso. Os R$ 280 do aluguel, geralmente, são pagos por conhecidos. Mesmo depois de dois infartos, Heredia segue sobrevivendo. Anda a pé para economizar. Como também não sobra dinheiro para comprar livros, relê os que estão envelhecendo na estante. “Como Evitar Preocupações e Começar a Viver”, de Dale Carnegie, é o que está atualmente sobre o criado mudo. Heredia pouco assiste à tevê. “Não vejo esses programinhas. Tenho nojo. Como tem cozinheiro na televisão”, diz. “Aqueles outros cheios de prostitutas e de bichonas que vão para uma casa no interior. Não sei como chama. ‘Big Brother’, essas coisas, não são comigo.” Dos bons tempos, sobraram os discos de Carlos Gardel e Libertad Lamarque. Heredia lembra que Maria da Penha não era muito boa dançando tango. Mas era linda. Loira. Na memória dele, meio parecida com a atriz Vera Fischer.

Heredia e Maria da Penha se conheceram em São Paulo, quando estudavam pós-graduação. Resolveram se casar e, na capital paulista, tiveram a primeira filha. As outras duas nasceram quando a família já havia se mudado para Fortaleza, cidade de Maria da Penha. De acordo com ela, a relação correu bem até Heredia conseguir a cidadania brasileira e se firmar profissionalmente. Depois, degringolou. “Não é possível que eu não tenha uma única qualidade. Não é possível que quem me acusa não veja nada de bom em mim. Nunca fui o marido mais perfeito, o pai mais perfeito. Mas sempre fui uma pessoa correta. Do fundo dessa alma de demônio, a Maria da Penha sabe disso.” Maria da Penha se mostra indignada com as acusações do ex-marido: “O meu agressor é muito inteligente. Mas, infelizmente, usou sua inteligência para o mal”, afirma. “Ele demonstrou ser uma pessoa maquiavélica e altamente perigosa.”
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terça-feira, 23 de abril de 2013

O Cravo saiu ferido, e a Rosa despedaçada (...)


Central de Atendimento à Mulher Ligue 180 será transformado em disque-denúncia e terá capacidade de atendimento ampliada


17/04/2013 às 16h55

Até o final do ano, a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 deve se transformar em um disque-denúncia e deve quadruplicar a capacidade de receber ligações. A informação foi divulgada nesta quarta-feira (17), pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR). Atualmente, o serviço recebe 20 mil telefonemas por dia (entre ligações positivas, trotes ou ligações incompletas).
Com mais de três milhões de atendimentos, desde a sua criação, em 2005, o Ligue 180 terá o aporte de R$ 25 milhões para aumento da capacidade técnica para triagem e distribuição das demandas.
A secretária de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da SPM, Aparecida Gonçalves, detalhou a ampliação do Ligue 180 para as gestoras do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, na última semana, durante encontro em Brasília. O evento foi promovido SPM-PR e reuniu aproximadamente 30 representantes estaduais.
Segundo Aparecida Gonçalves, o sistema que sustenta a Central também passará por mudanças, aumentando a capacidade técnica para triagem e distribuição das demandas. Quando a sua ampliação estiver consolidada, o número de telefonemas deverá ser quadruplicado, passando a 80 mil ligações.
“O 180 está sendo pensado para ser um depositório de informações sobre violência contra as mulheres e rede de atendimento, conforme previsto na Lei Maria da Penha”, explicou a coordenadora-geral da Central de Atendimento à Mulher, Clarissa Carvalho.
Ampliação
A partir do programa “Mulher: Viver sem Violência”, os atendimentos do Ligue 180, classificados como “urgências” e “emergências”, serão encaminhados diretamente para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), por intermédio do telefone 192, ou à Polícia Militar, pelo 190.
Atualmente, o Ligue 180 atua imediatamente em situações de tráfico de mulheres, com ativação de urgência para a Polícia Federal, e de cárcere privado, para o Ministério Público.
A ampliação do Ligue 180 faz parte do programa “Mulher: Viver sem Violência”, anunciado no mês de março pela presidenta Dilma Rousseff e o serviço será a porta de entrada da Casa da Mulher Brasileira.

Para DENUNCIAR ligue:

Pensando nos casos de violência contra as mulheres brasileiras que vivem em outros países, em novembro de 2011, o Ligue 180 expandiu sua cobertura para Espanha, Itália e Portugal. No semestre, o serviço registrou 90 ligações, tendo efetuado 33 atendimentos produtivos.


Fonte: http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2013/03/07/central-de-atendimento-a-mulher-chegara-a-mais-dez-paises-em-breve data de acesso 23 abril de 2013 as 15:16

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Linda, inteligente, independente e apanhava do marido



Miss G, paulistana de 32 anos, apanhava do marido e não conseguia sair da relação. Veja aqui como ela superou a situação e como este assunto pode atingir qualquer uma de nós!

Não, violência doméstica não acontece apenas com mulheres fracas, humildes ou dependentes de maridos que vivem entornando pinga em boteco. Violência doméstica também acontece com gente fina, bem-educada, analisada... Ou seja, pode rolar com sua amiga, irmã, com você mesma. Aconteceu com ela. Aqui, Miss G, uma paulistana de 32 anos que prefere não se identificar, dá a cara a tapa. “Eu poderia acabar com aquilo, mas não queria. Apanhar é tão humilhante que cega” 
 
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Violência doméstica (Foto: Shutterstock)

Neste último Réveillon, quando me desejavam a frase pronta “paz, amor, prosperidade”, eu tinha vontade de falar para ficarem com a prosperidade e com o amor para ver se a paz vinha reforçada. Tinha sido o primeiro ano de muitos sem apanhar, e, como um vira-lata resgatado que passa o resto da vida lambendo a mão do novo dono, eu ainda estava em processo de agradecer aos céus pelas circunstâncias, me sentindo um pouco não merecedora, pequena, assustada – e principalmente com medo de que, de uma hora para outra, tudo voltasse a ser o inferno que era.

Começou como imagino que comece a maioria dos casos de violência doméstica: catapultado por um coquetel power de álcool, insegurança e ciúme. Ele saiu me arrastando pelos cabelos de uma festa, meus pés quase sem encostar no chão, por causa da investida não solicitada de um amigo igualmente embriagado. Me lembro de estar no carro, voltando para casa, e pensando no quanto queria o colo dos meus pais. Mas estava de casamento marcado e achava que cancelar seria uma decepção que eles não mereciam. Então foquei em consertar o meu futuro marido.
 
Em vão, é claro. Seguindo o mais absoluto estereótipo das novelas, filmes e afins, os momentos violentos eram sempre camuflados pelos de fofurice extrema que vinham na sequência. Ele falava para os amigos que eu era a mulher mais linda do mundo, mas ia para casa e me chamava de gorda nojenta. Eu parava de comer, emagrecia os 5 quilos que precisava, e o ciúme aumentava descontroladamente. “Você tem que estar bem para mim, e eu odeio mulher raquítica, que não tem onde pegar”, ele vivia dizendo nos meus momentos mais magros. Eu relaxava um mês na academia e ouvia: “É bom você nunca se separar de mim porque ninguém vai te querer, Free Willy”. Free Willy? eu pesava 54 quilos!

O mais louco de sofrer bullying é que você pode ter uma autoestima maravilhosa, escutar elogios frequentes dos seus amigos, mas chega uma hora que você acaba acreditando. Ele era tão mais fraco em todos os sentidos que precisava acabar comigo para se sentir mais homem. Quando ele percebia minha vulnerabilidade, me acolhia, cuidava da asa que tinha quebrado... E era dessa parte que eu, tonta, me lembrava no dia seguinte. Fui mimada,
bajulada, muito amada e protegida pelos meus pais. Como qualquer menininha, tinha sonhos de princesa, de casamento rega-bofe com sapatinho de cristal e de “viveram felizes para sempre”. Onde tinha desandado? Em que etapa do processo trocaram o príncipe encantado pelo vilão?

Ele era tão mais fraco em todos os sentidos que precisava acabar comigo para se sentir mais homem. Quando percebia minha vulnerabilidade, me acolhia. E era só disso que eu me lembrava no dia seguinte (Foto: Shutterstock)
Com uns cinco anos de casada minha vida tinha virado um verdadeiro manicômio. Uma costela quebrada por um chute virava queda de cavalo, um osso da face trincado quando ele resolvia usar minha cabeça de bola de boliche na parede era um “não posso sair hoje, tomei todas e caí na escada, acredita?”. Nariz sangrando? Tempo seco em São Paulo. Hematomas? Carência vitamínica. Viramos mestres na arte de inventar desculpa para
preservar a relação bizarra que a gente tinha. Naquela época passava comercial falando da lei Maria da Penha (sancionada em 2006, aumenta o rigor da punição em casos de violência doméstica) o tempo todo na TV. Eram mulheres contando a minha história. Ele abaixava a cabeça, mexia nas pilhas do controle, trocava o canal. Ficava um climão tão tenso que dava para cortar o ar com uma faca. Eu fazia cara de choro na esperança de ele perceber. Ele saía, comprava um chocolate e jogava no meu colo. Eu comia lembrando os elogios de baleia e as comparações com as mulheres altas e magras dos amigos dele.

++ Quer ler mais? Violência doméstica: já aconteceu com você?  
 
Veja bem, eu poderia ter caído fora a qualquer momento. Mas eu não queria. A gente sempre acha que não quer porque ficamos completamente cegas na humilhação de um tapa. Joga luz no que temos de mais sombrio, extravaza coisas do passado que você não sabia que existiam, que aconteceram muito antes de o canalha começar a participação especial na sua vida. Eu tinha sido uma adolescente muito difícil, então, numa loucura inconsciente, achava que a agressão do meu marido era uma punição por isso e aceitava. Cada tapa aturado silenciosamente era um pedido de desculpas para a minha mãe. Quando o olho dele virava, eu saía correndo para o quarto para trancar a porta e gritava "meu pai vai te matar, minha mãe vai te pôr na cadeia!”. Ele ria porque sabia que eu não teria coragem.

Eu sabia que, se anunciasse para minha família o submundo em que vivia, nunca mais olharia para a cara dele, fato que me dava alívio e me apavorava na mesma medida. Preferia brigar com alguém a ficar sofrendo sozinha. Quem vê de fora simplesmente não entende, assim como eu não entendia. Um homem te quebra a cara, você se separa e vai na delegacia, né? hahaha. Aquele homem era a família que eu tinha escolhido. Era um pai maravilhoso para os meus filhos, a pessoa que me possibilitava brincar de Amélia, que testava minhas experiências culinárias e para quem comprava coisas de homem em viagens.

Confira os resultados da pesquisa realizada pela Glamour (Foto: Revista Glamour)


Toda vez que eu cogitava me separar, pensava que eu era uma egoísta só de imaginar isso. Não tinha direito de criar meus filhos em uma família quebrada só porque eu não estava feliz. Não queria ser a mãe solteira na Disney. Queria foto de todo mundo com camisetas iguais tomando café com os personagens. Nós quatro com braços levantados e boca aberta na foto da montanha russa. Nós quatro atrás da mesa do bolo nos aniversários. Situações que parecem bobas para as milhares de mães solteiras bem-resolvidas que existem por aí.

Mas quando você não quer se separar porque acha que a vida vai ser perfeita assim que conseguir corrigir só essa coisinha nele, mas ao mesmo tempo sabe que num erro de cálculo de força ou de quantidade de pinga pode te fazer perder a vida (que dirá ter vida perfeita...), aí fica puxado. Há uns dias espiei um momento no quarto das minhas filhas enquanto brincavam de princesa. A mais velha explicava para a caçula, que a empurrou: “Mãozinhas foram feitas para fazer carinho, não para bater”. Sábias palavras.

++ Mais "Na Real": Thammy Miranda: de princesa do rebolado a atriz cult  
Eu achava que, se ele estava fazendo coisas que não fazia antes, era porque não estava feliz. E minha obrigação de esposa era corrigir isso. Achava que, se levasse adiante alguma acusação, a coisa degringolaria de vez. Até que eu descobri, na hora de tirar um passaporte, que ele tinha registrado um boletim de ocorrência contra mim. Ao chegar em casa, eu só disse, devastada por dentro: Você não teve vergonha de sentar na frente de um delegado, com seu 1,85m, e falar que sua mulherzinha de 1,60 te deu uma unhada na cara? Jura que você não teve vergonha? Jura que ele não riu?”. (GRIFO NOSSO)
 
glamour (Foto: Revista Glamour)


Aos poucos, bem aos pouquinhos, o amor foi acabando. Eu não levo muito jeito para ser vítima, e todo esse lifestyle UFC estava pesando no meu bom humor. Não dá para passar o dia sorrindo sem dentes na boca, então resolvi preservar os meus enquanto ainda os tinha. Estou solteira desde que me separei, há um ano, e não consigo me imaginar com alguém tão cedo. Ao contrário do que o meu ex falava, descobri que alguns homens me querem, sim, o que bastou para recuperar um pouco da autoestima que ele me roubou. A ferida do coração cicatrizou, e a cicatriz formou uma barreira. Não sinto mais dor, nem física nem emocional, o que às vezes me faz sentir anestesiada de tudo. Não sinto e ponto. Fiquei com um misto de preguiça e medo de homens. Eu ainda escuto a voz dele gritando insultos na minha cabeça sempre que bate uma insegurança. Quando isso acontece, repito para mim mesma que era uma manifestação da fraqueza dele, e não uma realidade minha.

Também não cabe a mim perdoar – nem a ele, nem a mim mesma por ter me obrigado a viver esse inferno. Vivi tudo isso porque tive que viver, porque foi o que pareceu certo naquele momento. Violência realmente é o último refúgio dos incompetentes. Sei que mais dia menos dia vou me sentir melhor. Amar dói, mas sou mulher. E nós mulheres somos fortes. Usar salto alto também dói e não é por isso que a gente vai viver de rasteirinha, não é mesmo? 

Competência em crimes dolosos contra a vida


Dúvida relativa à fase de pronúncia se deve ao artigo 14 da Lei 11.340/06

Texto: Felipe Fontana Porto



O presente artigo visa a estabelecer se a Lei 11.340/06, que criou diversos mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, modificou a competência da fase de pronúncia dos processos em que se apura a suposta prática de crimes dolosos contra a vida praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas e familiares.

A dúvida deve-se ao art. 14 da Lei 11.340/06, que assim dispõe:

Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. (grifo nosso)
Em relação ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida, não resta dúvida de que será perante o Tribunal do Júri, tendo em vista a competência estabelecida no art. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal:


Art. 5º (...) XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: 
(...) 


d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida; (grifo nosso)
A dúvida é saber se o artigo 14 da Lei 11.340/06 teve como consequência a modificação da competência da fase de pronúncia quando o crime doloso contra a vida se der no âmbito das relações domésticas e familiares.

O Superior Tribunal de Justiça, em um primeiro posicionamento sobre a matéria, assim se manifestou: 



HABEAS CORPUS - CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA PROCESSADO PELO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER - NULIDADE - NÃO OCORRÊNCIA - LIBERDADE PROVISÓRIA - CRIME HEDIONDO - IMPOSSIBILIDADE - ORDEM DENEGADA. -Ressalvada a competência do Júri para julgamento do crime doloso contra a vida, seu processamento, até a fase de pronúncia, poderá ser pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, em atenção à Lei 11.340/06.



- Não há possibilidade de concessão da liberdade provisória, em crimes hediondos, apesar da modificação da Lei 8.072/90, pois a proibição deriva da inafiançabilidade dos delitos desta natureza, trazida pelo artigo 5º, XLIII, da Constituição Federal.



- Tratando-se de paciente preso em flagrante, pela prática, em tese, de crime hediondo, mostra-se despicienda a fundamentação do decisum que manteve a medida constritiva de liberdade nos termos exigidos para a prisão preventiva propriamente dita, não havendo que ser considerada a presença de circunstâncias pessoais supostamente favoráveis ao paciente, ou analisada a adequação da hipótese à inteligência do art. 312 do CPP.


- Denegaram a ordem, ressalvado o posicionamento da Relatora. (HC 73.161/SC, Rel. Ministra Jane Silva (desembargadora convocada do TJ/MG), Quinta Turma, julgado em 29/08/2007, DJ 17/09/2007, p. 317) (grifo nosso)
Uma leitura apressada deste julgamento poderia fazer crer que a Lei 11.340/06 em seu art. 14 havia estabelecido a competência para o processamento dos crimes dolosos contra a vida em violência doméstica perante os Juizados de Violência Doméstica.

Entretanto, merece transcrição trecho do voto da ministra relatora:
Como o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, através da Resolução 18⁄06, instituiu o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, que, no caso, funciona junto à 3ª Vara Criminal da Comarca de Florianópolis, o processamento do feito, até a fase do artigo 412, do Código de Processo Penal, se dá no referido Juizado, em atenção ao artigo 14, da Lei 11.340⁄06. Este artigo determina que o processo, julgamento e execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher se dará nestes Juizados. Assim, não se trata de usurpação da competência constitucional do Tribunal do Júri, vez que o julgamento do feito será realizado nele. Apenas terá curso, o processo, no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, até a fase do artigo 412, do Código de Processo Penal.

O voto deixa muito claro que a competência para o processamento da fase de pronúncia nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher deve-se à resolução do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, que assim estabeleceu expressamente.


Portanto, o que se infere desta decisão é que os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em regra não têm competência para o processamento dos crimes dolosos contra a vida, mas os Tribunais de Justiça podem ampliar a competência destes juizados para incluir referida competência. Porém isto deverá estar expressamente previsto na legislação de organização judiciária local.

Veja que este entendimento se coaduna com o disposto no art. 129, § 1º, da CF/1988, que estabelece ser dos Tribunais de Justiça a iniciativa da legislação de organização judiciária:


Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição. 
§ 1º - A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça. 


Acrescente-se que o Superior Tribunal de Justiça em julgados posteriores confirmou este entendimento, conforme ementas abaixo transcritas:


PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. JUIZADO ESPECIAL. COMPETÊNCIA. CONSTRANGIMENTO. RECONHECIMENTO. 



1. Estabelecendo a Lei de Organização Judiciária local que cabe ao Juiz-Presidente do Tribunal do Júri processar os feitos de sua competência, mesmo antes do ajuizamento da ação penal, é nulo o processo, por crime doloso contra a vida - mesmo que em contexto de violência doméstica - que corre perante o Juizado Especial Criminal. 


2. Ordem concedida para anular o processo a partir do recebimento da denúncia, encaminhando- se os autos para o 1º Tribunal do Júri de Ceilândia/ DF, foro competente para processar e julgar o feito. (HC 121.214/DF, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 19/05/2009, DJe 08/06/2009) (grifo nosso)

HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. PREVISÃO NA LEI DE ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. 



1. Há previsão expressa na Lei de Organização Judiciária do Distrito Federal a respeito da competência do Tribunal do Júri para processar e julgar os crimes dolosos contra a vida, ainda que se trate de delito cometido em contexto de violência doméstica. Precedentes. 


2. Ordem denegada. (HC 163.309/DF, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 07/12/2010, DJe 01/02/2011) (grifo nosso)

Ressalte-se que este entendimento não viola a competência constitucional do Tribunal do Júri, posto que, conforme visto, o texto da Carta Magna traz expressamente que a competência deste tribunal é apenas para o "julgamento dos crimes dolosos contra a vida" (inciso XXXVIII do art. 5º da CF/88) .


Confirmando esta conclusão, segue trecho da decisão monocrática do ministro Joaquim Barbosa do Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 92.538/SC: A Lei n°11.340/06 (denominada Lei Maria da Penha) adotou um conceito de violência doméstica bem amplo, de forma a abarcar diversos instrumentos legais para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nas instâncias administrativa, civil, penal e trabalhista. Assim, o art. 14 da aludida Lei autorizou a criação pela União ou pelos Estados, de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal. Diante disso, a Resolução n° 18/06 do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina instituiu o Juizado de que trata a lei e, na Comarca da Capital, estabeleceu seu funcionamento junto à 3ª Vara Criminal, deslocando, nos casos de crimes dolosos contra a vida da mulher, a instrução do processo, até a fase do art. 412 do CPP, para a 3ª Vara Criminal da Capital, mantendo, contudo, o julgamento perante o Tribunal do Júri (conforme parecer do Procurador de Justiça no HC 2006.044235-4, do TJ de Santa Catarina, fls. 103). 


Não vejo ilegalidade na Resolução n° 18/06 do TJ de Santa Catarina, que em tudo procurou ajustar a organização judiciária ao novo diploma legal, sem conflitar com as normas processuais que atribuem com exclusividade ao Tribunal do Júri, o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. (grifo nosso)

Desta forma, para saber qual a competência em cada estado para o processamento da fase de pronúncia dos crimes dolosos contra a vida no âmbito das relações domésticas e familiares contra a mulher, é necessário verificar a lei de organização judiciária e as resoluções dos Tribunais de Justiça que criaram as referidas varas especializadas.

Felipe Fontana 
Porto Analista de Promotoria I (Assistente Jurídico) do Ministério Público do Estado de São Paulo; graduado em Direito na UNIVEM - Centro Universitário "Eurípedes" de Marília; pós-graduado em Direito Processual pela Universidade Anhanguera-Uniderp.

Representação criminal na lei Maria da Penha?


Questionamentos em relação à representação criminal a crimes de lesão corporal contra a mulher
Texto: André Gonzalez Cruz



Desde a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, como é mais conhecida a Lei nº 11.340/2006, questionava-se, na doutrina e nos tribunais, intensamente, sobre a necessidade ou não de representação criminal para a apuração e processamento dos crimes de lesão corporal de natureza leve praticada com violência doméstica e familiar contra a mulher. Apreciando a matéria, o Superior Tribunal de Justiça chegou a entender pela prescindibilidade da representação criminal, conforme transcrito abaixo:
“1. Esta Corte, interpretando o art. 41 da Lei 11.340/06, que dispõe não serem aplicáveis aos crimes nela previstos a Lei dos Juizados Especiais, já resolveu que a averiguação da lesão corporal de natureza leve praticada com violência doméstica e familiar contra a mulher independe de representação. Para esse delito, a Ação Penal é incondicionada (REsp. 1.050.276/DF, Rel. Min. JANE SILVA, DJU 24.11.08). 2. Se está na Lei 9.099/90, que regula os Juizados Especiais, a previsão de que dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais e lesões culposas (art. 88) e a Lei Maria da Penha afasta a incidência desse diploma despenalizante, inviável a pretensão de aplicação daquela regra aos crimes cometidos sob a égide desta Lei. (Superior Tribunal de Justiça, 5ª Turma, Habeas Corpus nº 91540/MS, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, decisão unânime, julgado em 19/02/2009, DJ de 13/04/2009)”.

Luís Flávio Gomes e Alice Bianchini em Lei da violência contra a mulher: renúncia e representação da vítima defendem essa tese comentam sobre o assunto: “Considerando-se o disposto no art. 41 da nova lei, que determinou que aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099/1995, já não se pode falar em representação quando a lesão corporal culposa ou dolosa simples atinge a mulher que se encontra na situação da Lei 11.340/2006 (ou seja: numa ambiência doméstica, familiar ou íntima) (nesse sentido cf. também: José Luiz Joveli; em sentido contrário: Fernando Célio de Brito Nogueira). Nesses crimes, portanto, cometidos pelo marido contra a mulher, pelo filho contra a mãe, pelo empregador contra a empregada doméstica etc., não se pode mais falar em representação, isto é, a ação penal transformou-se em pública incondicionada (o que conduz à instauração de inquérito policial, denúncia, devido processo contraditório, provas, sentença, duplo grau de jurisdição etc.). Esse ponto, sendo desfavorável ao acusado, não pode retroagir (isto é: não alcança os crimes ocorridos antes do dia 22.09.06). Não existe nenhuma incompatibilidade, de outro lado, entre o art. 41 e o art. 16. O primeiro excluiu a representação nos delitos de lesão corporal culposa e lesão simples. No segundo existe expressa referência à representação da mulher. Mas é evidente que esse ato só tem pertinência em relação a outros crimes (ameaça, crimes contra a honra da mulher, contra sua liberdade sexual quando ela for pobre etc.). Aliás, nesses outros crimes, a autoridade policial vai colher a representação da mulher (quando ela desejar manifestar sua vontade) logo no limiar do inquérito policial (art. 12, I, da Lei 11.340/2006)”.

A Lei Maria da Penha afasta a incidência desse diploma despenalizante, inviável a pretensão de aplicação daquela regra aos crimes cometidos sob a égide desta Lei

Da mesma forma que o entendimento do autor Guilherme de Souza Nucci em Código Penal Comentado: “Se alguma vantagem houve, está concentrada na ação penal, que passa a ser pública incondicionada, em nossa visão, retornando para a iniciativa do Ministério Público, sem depender da representação. Isto porque o art. 88 da Lei 9.099/95 preceitua que dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves (prevista no caput do art. 129) e lesões culposas (constante do § 6º do mesmo artigo). Ora, a violência doméstica, embora lesão corporal, cuja descrição típica advém do caput, é forma qualificada da lesão, logo, não mais depende de representação da vítima.”

Contudo, a partir do julgamento do Habeas Corpus nº 113608/MG, aquela Corte começou a modificar este entendimento asseverando, naquele julgado, pela necessidade da representação criminal para a apuração e processamento dos crimes de lesão corporal de natureza leve praticada com violência doméstica e familiar contra a mulher, in verbis:

“1. O art. 16 da Lei nº 11.340/06 é claro ao autorizar a retratação, mas somente perante o juiz. Isto significa que a ação penal, na espécie, é dependente de representação. 2. Outro entendimento contraria a nova filosofia que inspira o Direito Penal, baseado em princípios de conciliação e transação, com o objetivo de humanizar a pena e buscar harmonizar os sujeitos ativo e passivo do crime”. (Superior Tribunal de Justiça, 6ª Turma, Habeas Corpus nº 113608/MG, rel. Min. Og Fernandes, rel. para acórdão Min. Celso Limongi, decisão por maioria, julgado em 05/03/2009, DJ de 03/08/2009).

“I - A intenção do legislador ao afastar a aplicação da Lei nº 9.099/95, por intermédio do art. 41 da Lei Maria Penha, restringiu-se, tão somente, à aplicação de seus institutos específicos despenalizadores - acordo civil, transação penal e suspensão condicional do processo. II - A ação penal, no crime de lesão corporal leve, ainda que praticado contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, continua sujeita à representação da ofendida, que poderá se retratar nos termos e condições estabelecidos no art. 16 da Lei nº 11.340/06 (Precedentes)”. (Superior Tribunal de Justiça, 5ª Turma, Habeas Corpus nº 137620/DF, rel. Min. Felix Fischer, decisão por maioria, julgado em 08/09/2009, DJ de 16/11/2009.)

Julio Fabbrini Mirabete em Código Penal Interpretado adota esta última linha de raciocínio: “Nos §§ 9º e 10 do art. 129, acrescentados pela Lei 10.886, de 17.6.2004, sob a nova rubrica Violência Doméstica, prevêem outras formas qualificadas de lesão corporal dolosa. No § 9º, que se aplica à lesão corporal leve (art. 129, caput), descrevem-se como qualificadoras algumas circunstâncias previstas como agravantes genéricas (art. 61, II, e e f) e que se referem a vínculos de parentesco, casamento, relação doméstica, de coabitação ou de hospitalidade, as quais já foram examinadas (item 61.4). Acrescentaram-se, porém as relações com companheiro ou pessoa com que conviva ou tenha convivido o agente, evitando-se a discussão nas hipóteses de união estável ou outro vínculo de relacionamento amoroso ou de estarem os cônjuges ou companheiros divorciados ou separados, judicialmente ou de fato, situações nas quais, por ausência de expressa previsão legal, ou porque não mais subsistente a necessária relação de fidelidade, no segundo caso, vinha-se afastando a agravante genérica. Deve-se incluir, porém, no alcance da norma também a vítima com quem desfrutava o agente de um convívio doméstico, ainda que de natureza diversa da relação conjugal ou união estável, como enteados, parentes, etc. A pena de detenção cominada para essa forma qualificada, que era de seis meses a um ano, foi alterada para três meses a três anos pela Lei 11.340, de 7.8.2006. Assim, embora leves as lesões, o crime praticado com violência doméstica não mais constitui infração de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei 9.099/95, com redação dada pela Lei 11.313, de 28.06.2006). A Lei 11.340 também acrescentou ao artigo o § 11, que determina o acréscimo de um terço, nas hipóteses previstas no § 9º, se a vítima é pessoa portadora de deficiência. Constituindo a violência doméstica forma qualificada do crime de lesão corporal leve (art. 129, caput, e § 9º), a ação penal depende de representação do ofendido diante do que dispõe o art. 88 da Lei 9.099, de 26.9.1995”.

Geraldo Prado, autor de Comentários à lei de violência doméstica e familiar contra a mulher, também acompanha tal entendimento: “Embora de início tenha me inclinado, com muita resistência, a adotar a tese de que o crime de lesão corporal dolosa leve, em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher, tenha voltado a ser de ação penal pública incondicionada, mudei de ideia (tenho, pois, de me retratar!). As teses de política criminal, assentadas no objetivo de pacificação social em mãos da vítima, não me seduzem, tampouco têm o poder jurídico de prevalecer sobre a Constituição da República, que atribui ao Legislativo o monopólio de traçar as linhas gerais de política criminal, valendo-se da lei. A melhor solução de política criminal estaria em atribuir ao Ministério Público, no âmbito da ação penal pública, espaço de atuação que à luz da lei permitisse explorar o caráter restaurativo de determinadas intenções ou mesmo abrir mão do exercício da própria ação penal quando este exercício viesse a ser considerado excessivo ou inadequado à tutela dos interesses da vítima. Não foi essa a escolha, e o confronto doutrinário entre opções político-criminais cede diante da legalidade constitucional. No caso da lesão corporal dolosa leve, todavia, não há como se interpretar literalmente o artigo 41 da Lei Maria da Penha. Menos porque o crime está definido no Código Penal e a Lei dos Juizados Especiais Criminais tenha sido empregada tão-somente como meio de modificar a disciplina geral da matéria, no Código Penal. [...] Com efeito, a mudança introduzida em nosso ordenamento, no que toca ao crime de lesões corporais leves, incorporou a experiência cotidiana de anos de aplicação do Código Penal, com frequente invocação de princípios de bagatela e de difusa ausência de interesse, em âmbito de política criminal, a justificar o emprego da sanção penal”.
E assim também é o pensamento de Pedro Rui da Fontoura Porto (autor deViolência doméstica e familiar contra a mulher): “Sem sombra de dúvidas, se a exigência de representação é de fato uma medida despenalizadora, não menos certo é que deixar esta decisão no poder da vítima, que pode então utilizá-la como instrumento de barganha para uma justa reparação de danos civis, atende a dois objetivos: punir o sujeito ativo e beneficiar direta e imediatamente a própria vítima. Com efeito, é importante lembrar que o poder de representar pressupõe o de conciliar, de sorte que, mantida a representação, assegura-se também a conciliação e, nesse caso, o potencial de barganha da vítima, normalmente fragilizada e suscetível a acordos que lhe pudessem ser prejudiciais, é fortalecido pela faculdade de decidir acerca da deflagração do processo penal e pela inexistência de outras medidas despenalizadoras posteriores que poderiam ser ainda mais vantajosas ao varão agressor. [...] De início, o fato de o legislador ter retirado do texto original a literal referência à ação penal pública incondicionada tem uma explicação muito lógica: o texto tal como elaborado seria totalmente prejudicial à vítima mulher. Veja-se que o texto vertido no art. 30 do projeto original condicionava à representação, toda e qualquer violência doméstica e familiar contra a mulher. Destarte, considerando a amplitude dos arts. 5° e 7° da Lei 11.340/06, até mesmo delitos sexuais com violência real, tentativas de homicídio, extorsões, lesões graves, tortura, todos ficariam condicionados à representação, já que o dispositivo não fazia qualquer distinção. Por aí se vê que andou bem o legislador em retirar logo do texto um dispositivo tão nefasto. Diferente, é claro, quando se trata de lesões leves, traduzidas muitas vezes em algumas escoriações e equimoses. 

Por outra, o fato de tratar-se a violência doméstica contra a mulher de um atentado contra os direitos humanos, conforme estatui o art. 6° da LMP, também não impõe a conclusão de que se trate de um bem indisponível. É pacífico que a integridade física é disponível, salvo quando ameace significativamente a própria vida humana ou indique insanidade mental, tanto que cirurgias eletivas, inclusive plásticas, tatuagens, participação em esportes radicais, artes marciais, são considerados exercício regular de um direito. Ademais, há muitos outros direitos, normalmente classificados como direitos fundamentais, que também são disponíveis: a propriedade e a liberdade são exemplos disso. Veja-se que os próprios autores citados tecem críticas ao art. 6° da LMP, asseverando sua desnecessidade, visto que qualquer violência contra a pessoa representa um atentado contra os direitos humanos. [...] Concluindo, estamos em que a razão mais crucial e elevada para a admissão da representação, nos casos de lesões leves praticadas com violência doméstica contra a mulher, reside no caráter personalíssimo do fato, que recomenda, por ressalva à intimidade da própria vítima e ao seu livre-arbítrio, prevaleça sua vontade. Nesse sentido, não há como ignorar as preciosas considerações de Maria Lúcia Karan, a seguir transcritas: Quando se insiste em acusar da prática de um crime e ameaçar com uma pena o parceiro da mulher, contra sua vontade, está se subtraindo dela, formalmente ofendida, seu direito e seu anseio a livremente se relacionar com aquele parceiro por ela escolhido. Isto significa negar-lhe o direito à liberdade de que é titular, para tratá-la como coisa fosse, submetida à vontade de agentes do Estado que, inferiorizando-a e vitimizando-a, pretendem saber o que seria melhor para ela, pretendendo punir o homem com quem ela quer relacionar e sua escolha há de ser respeitada, pouco importando se o escolhido é ou não um ‘agressor’ - ou que, pelo menos, não deseja que seja punido.”

Isto se deve, dentre outros fatos, à inexistência de manifestação definitiva do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, o que somente veio a ocorrer no julgamento da ADI nº 4424, proposta pelo Procurador-Geral da República, em que restou assentada a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher no ambiente doméstico.

Derradeiramente, necessário assinalar que se concorda com o entendimento do Pretório Excelso, com a única ressalva de que o guardião da Constituição Federal de 1988 demorou muito para decidir a questão, em grande parte pelo atraso na provocação do Procurador-Geral da República, somente realizada em meados de 2010, isto quando a lei comentada é de 2006.

André Gonzalez Cruz 
Especialista em Ciências Criminais pela UGF, mestrando em Políticas Públicas pela UFMA e Doutorando em Direito pela UNLZ.